sábado, 2 de março de 2013

LEGBA III







LEGBA, MEDIADOR ENTRE OS VODUN

Eis um papel delicado e dramático, visto que a ordem estabelecida pode ser posta em dúvida pelo mediador. Sobretudo quando se sabe que cada vodun tem seu idioma particular e que nenhum dêles compreende a língua dos outros, pode-se avaliar a importância da posição tomada por Mawu-Lissa, confiando o papel de intérprete e mensageiro a Legbá. São inúmeros os mitos que relatam como Legbá usou o seu conhecimento das línguas dos diversos vodun para enganá-los. Dessa forma , muitas vêzes, atirou uns contra os outros. Assim fazendo, impôs-se como chefe e cabeça de jogo, beneficiande se das contendas constantes entre os vodun. Outro privilégio de Legbá: - nenhuma comunicação pode existir entre o Criador e tal ou qual vodun sem sua intervenção. Cabe a êle assegurar a permanência das relações entre o Criador e os vodun, cada um dêles gerindo um domínio particular. Isto significa que Legbá asegura o controle e o domínio das vias de comunicações no mundo divino. Esse controle por parte do servidor tem sido bem compreendido em numerosos mitos onde se trata da metamorfose do servo mensageiro em patrão mensageiro. Realmente, nos ritos específicos em honra dos vodun, assiste-se à dramatização dessa função: Legbá, mensageiro dos vodun, é sempre invocado antes daqueles a quem deve levar a mensagem. Na mesma ordem de idéias, recebe êle as oferendas e libações, antes de todas as outras divindades. Segundo as interpretações ou justificações que certos especialistas autóctones dos mitos dão dessas práticas e rituais, trata-se de destruir as maquinações eventuais de Legbá e apaziguar-lhe as cóleras imprevisíveis. Efetivamente, uma das frases consagradas com o fim de caracterizar o personagem sem caráter determinado que é Legbá é a seguinte: - Agbo hanyan hanyan gba! ou seja "Agbo, em torno dêle está a desordem!" E assim, o mensageiro e intérprete da esfera divina é mais temido e respeitado do que todas as outras divindades.

LEGBA, INTERMIDIARIO ENTRE OS VODUN E OS HOMENS

E o vodun mais popular. Contam os mitos que êle toma parte deliberadamente em favor dos homens nos choques com as divindades.
Todo homem que é envolvido em uma situação crítica recorre a seus bons serviços. São-lhe destinados sacrifícios em todos os lugares em que se ergue sua efígie: nas entradas das a ideias (Tô-Legbá), em todas as encruzilhadas e bifurcações de estradas, em todos os lugares de concentração, tais como os mercados (Ahi-Legbá), diante das fachadas (Agbo-nouhossou), diante dos santuários das outras divindades (Houn-Legbá). Sua efígie é representada por uma figura estranha e impressionante, da  qual diz-se muito mal; mas não nos detenhamos aqui em todas essas considerações. Digamos que Legbá inspira aos daomeanos, não o temor, mas a afeição. É a divindade mais próxima, à qual contam êles tudo que encerra o seu inconsciente e a quem fazem promessa como a um amigo. O animal que lhe é consagrado é o cão e quando os daomeanos vêem um cão a comer o alimento oferecido a Legbá, ficam maravilhados. Tal espetáculo do cão a devorar a oferenda prodigaliza uma enorme segurança. Esses sinais de afeto e de simplicidade no culto de Legbá, da desprendimento (já que Legbá não tem casa de culto, nem sacerdote, ao contrário das outras divindades), traduzem a grande familiaridade dessa divindade com os homens. Também lhe são dirigidas exclamações de grande intimidade: "Nou hanyan hanyan!" - a boca
em desordem; "Ma mon Legbá tacho nou chocho, e na gblé!" - já viram alguma vez Legbá gastar azeite, sem que se assista a um tumulto?"
Relembremos alguns de seus nomes fortes e constatemos tal familiaridade: - Rei-Destruidor de tôdas as cousas - Aquêle que come e sai com a boca suja - Aquêle que tem lábios grossos, etc. . .
E, pois, sem qualquer dissimulação que o indivíduo aflito dêle se aproxima. E é com confiança que espera sua intercessão junto aos vodun interessados por tal ou qual caso de infelicidade.
Na medida em que Legbá é mediador entre os homens e os deuses, os daomeanos que querem assegurar-se da sua cumplicidade ou da sua benevolência, antes de qualquer outra manifestação, deduzem que de suas fantasias depende o resultado de uma situação crítica.
Assim, frente ao vodun onisciente Mawu-Lissa, surge a silhueta familiar do vodun eficiente e representante da mudança ainda não realizada: - Legba.

A CORRESPONDENCIA DE LEGBA COM OS VALORES
ESSENCIAIS DA SOCIEDADE GLOBAL DOS DAOMEANOS


Falar dos valores essenciais da sociedade global significa designar a fonte de origem social mais importante que teve o privilégio de construir os mitos, graças aos elementos colhidos de todos os horizontes até onde as guerras e os contactos pacíficos conduziram os daomeanos. Os sacerdotes e altos dignitários do reino do Daomé dirigiam e controlavam os centros culturais onde se efetuavam os rituais, e reinterpretavam os mitos, segundo a situação sócio-política. Neste sentido, descobrimos na caracterização do personagem divino sem caráter determinado, que é Legbá, a expressão de um simbolismo que dá sentido tanto ao imaginário como ao real. O alto valor do homem acha-se aí acentuado. Com efeito, em tempo algum, algo pareceu irrealizável para os daomeanos. Mesmo quando a divindade do alea jacta est: Fa, se pronuncia e revela a impossibilidade, através da palavra do Criador Mawu-Lissa, os daomeanos sempre pensaram ser possível encontrar uma saída dentro do seu mundo regido pelo destino.
Segundo outro ponto-de-vista, essa sociedade, na qual a noção de hierarquia se achava incorporada em todas as instituições, produziu, no entanto valores significando a possibilidade de destmir a hierarquia estabelecida. O modêlo das linhagens é expresso pelo personagem divino Legbá; pois nas linhagens dos daomeanos, nas quais se adota o direito absoluto do primogênito sobre o mais moço, prevalece a impressão de que êste ou o irmão mais jovem não é relegado, para sempre, a um papel de simples subordinação. Muito ao contrário, é do mesmo que nascem novos valores apropriados para movimentar a linhagem. O irmão mais novo é sempre considerado como o ser inteligente por excelência. Nesse mundo, em que tudo se baseia no equilíbrio das forças, os daomeanos pensam que aquilo que o caçula perde em bens materiais, recupera no plano intelectual e espiritual.
Partindo dêsse ponto-de-vista, tal "falta" é considerada como uma situação de promoção certa.
Um último ponto pode, ainda reter nossa atenção. A fluência dos têrmos relacionados entre si na organização do panteão não traduz a desordem, mas a possibilidade de cada grupo cultural especializado dar prioridade à divindade que Ihe concerne de modo especial. Esta observação tem um profundo significado: expressa a ponto principal quanto ao nível dos valores. Os têrmos da hierarquia ou da configuração importam menos do que a relação entre êles. Um exemplo preciso pode convencer-nos disto. Enquanto no modêlo do panteão de que nos servimos ao longo dêste artigo a divindade Gou se acha na 5ª classe, na genealogia dos vodun, um outro modêlo, o do panteão do Céu, irá situá-lo na primeira. Assim em vez de 1) Dada Zodji e Nyhwé Ananou, 2 ) SÔ, 3) Agbé Naeté, 4) Agé, 5) Gou, 6) Djo, 7 ) Legbá teremos 1 ) Gou, 2) Agé, 3) Dji, 4) Wêtê-Alawê 5) Loko (mêdje) , 6) Adjakpa, 7) Legbá.
Que o leitor não se apegue demais a êsses nomes em si mesmos, mas constate sòmente as transferências de que são objeto certas divindades (passando-se do modêlo do panteão do céu ao da terra) e ,a relação mantida na hierarquia. Esta tendência é tal que o nome da divindade criadora ou demiurgo conhecerá modificações quando se quer aprofundar a dimensão do original. Uma divindade da qual não se tratou até agora, Nana-Buluku (que possui um templo em Doumé) vem às vêzes "apagar" e suprimir os nomes Mawu-Lissa.
Tudo se passa como se a sociedade quisesse exprimir que não há totalidade cerrada e que há sempre um ser dotado de ao menos uma pequena dose de ciência, mais do que outro. Legbá que não conhece nenhuma restrição e não receia nenhum tabu, se é verdade que não
respeita nenhuma ordem estabelecida, não põe, entretanto, em dúvida a exigência da ordem como tal. Ele a submete apenas às necessidades da mobilidade e da manipulação. Graças a êle toda obra concluída é sempre reiniciada e retrabalhada.

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